quinta-feira, 27 de março de 2008

NADO SOBRE O TEMPO

Narciso:

da natureza e do ser



1
a dúvida de mim me gera
a dúvida de mim me sou
ilha
onde navio não aporta
leva lado a lado ao sol
flutuante como espuma
a partir da inconfluência das razões
última é a palavra que não termina
acende-me fagulha e passo
vasto é o pássaro
a passagem
infinito
faces do inefável
nas várias personas do ser
no aprendizado aprendo-me

2
placa vítrea do tempo
como a cor destino
iça tino
isca duende
sem barras não há saídas
espaço do sonho
horizonte
do qual éter etéreo
atlante língua
semântica de espelhos
por escândalo e estado
suprema dor
nado
porque disponho
e fada-se quem quer

3
arrebato pedras
em minha liberdade
lívido é meu perdão
meu desejo inciso
componho um feixe de idéias
conexão de vazios
maldito e mágico meu pedaço
que se acaso a borboleta azul gostar
basto-me

4
quero a festa
a festa tribal
no chão nativo
com convites dourados
frutas
faunos
e colares de papoulas

5
verde sol
riso salino
ouço a natureza
não sou mais eu
sou beleza
não sou mais eu
sou natura
cumpro minha tristeza
com pressa
eu
ser inevitável
nascida em qualquer era

6
plasma e prisma
sendo o si mesmo
luminosidade
pura transparência
transcende
penso além da razão
alguém permaneceu azul

7
captar a essência da essência
o âmago
a compaixão dos sentidos
peixe-pássaro voar
ensolarar
asas abertas
o manto posto
barbatanas aladas
alçados corpos
infinito
e tudo é eternamente

8
como tu
arca cigana
cereja insana
indígena primeira
sensual dança
passageira vinhas
sangue
aldeia
sereia audível
como véu que cai na minha cabeça

9
o que me torna destra
extra
impublicável
o que me torna corrente
seta
desconhecida e incerta
calcanhar de aquiles
festa
como o imensurável?
em que sonhos perdi meu sonho?
quando as portas estavam abertas
eu disse não
(há um feitiço maior
que todos os feiticeiros)

10
o acontecer livre
o inédito indetido dos fatos
nosso transformar que não sentimos
o momento
inesperado do estalo
procuro na vida
nas pessoas
através dos dias
dos dedos dos dentes
pela natureza a dentro
procuro no ar atos astros
ando à procura
nas terras e mares do mundo
na solidão nos abraços
mas estás dentro de mim

11
nada vai mudar meu passo
que espeta o espanto
e toca a floresta
caminho cedo antes de nascer
o sol navegou três vezes o horizonte
verde é o vento que pariu minha partida
o verbo me compôs a rima
estou descalça
sem saltos sem santos sem botinas
mais uma vez vou só
empinando-me acima do meu pranto

12
o susto de mim sou eu
escrevo entre aspas e parêntesis
hiatos do impossível
acima ou abaixo do equador
a condição humana é a mesma
intuitiva essência
sabedoria ancestral
arcaico instante
e o que fica
(meu vácuo transborda)

13
para mamãe
quando alcei vôo
voei por partos pragas e partidas
de maceió às vagas estrelas
das manguabas às madrugadas
quando partida pedaços cantei
fiz-me
absinto
trombeta
virada
e virei
as teorias dos planctos
poeiras
pedaços de estrelas
ex-fera em contato com a beleza
mar sem marco
navegante sem rastros
rastreadora de mim
para lá das tordesilhas
navego minha jangada

14
para eliane pinto paes
eu que não perdi o sonho
contemplo esta água
infinitamente translúcida
onde passam adormecidos pés caetés
perdido o puro
contemplo este cais
de pedra e coral
horizontal
ao céu aberto
vertical
recebendo eternamente as águas
ao meu lado rasga em branco e azul
um pássaro prateado
em reta curva
formando entre o cosmo e eu
uma pirâmide exata
constato aqui o meu lugar

15
a água profundo ar
corrente indizível profundo mar
espaço náutica depois terra
fecundo cio fogo e relincho
o peixe
cardume
prateia movimentos
quase sem se saber
é ser
manancial de maravilhas

16
protoplasma sobre a terra
ave
de ti me crio
eu

17
a nave sabe o nauta
o nauta o navegante
posta a marca única
faça-me
esfinge
ave devorada
assombro
fulgurante desejo
como dragão caliente
estira a língua
serpente fria
lambe o tempo
que no ar se estende
faço-me como cinza caeté

18
como um caeté que é
a vida é um arco-íris lilás
quando vagou a vasta passarada
seria pássaro meu corpo?
por certo e com toda razão
meu pai e minha mãe disseram sim

19
nado sobre o tempo
pedaço de estrela
preto pedra
protoplasma
derradeira
então rasgo o manto
e faço o que eu quero

20
minha procura
confunde-se com a dos astros
vaga suprema beleza
eu te busco
caminho pedaços de sopro
estrela da noite me guia
mas o meu self
é uma mandala azul?
como se não visse a realidade
vôo sol
parte
partidos trópicos
em olhos de soluço
a solução da estrela marinha
é água
fogo fundido na terra
e perdão

21
nada me surge
a não ser eu mesma
dividida busca
nada me resta
a não ser eu mesma
procurando-me
nada me tem
a não ser eu mesma
incisa decisão
e a palavra que não sei...

22
plena comunhão
com o universo
o olho da vida
prismática forma
sobre a qual desconheço
e no entanto
ela me sei
a imagem delimita-se a si mesma
a forma é mera sugestão
os conceitos às vezes me interessam
os preconceitos não

23
parto em busca de infinitas paralelas
passagens
dimensões
busco ilimitado espaço
em um eterno templo
tempo
não sou eu
sou estado
o indesperto mágico de mim
magia
deserto
mística das eras
relógio do tempo
porteiro das esferas

24
como a solidão que mereço
no cálice vital
o champanhe que escolhi
como libélula e caroço
que de semente virou gosto
da liberdade que me fez
além das esferas vou
canto o meu próprio canto

25
somos iguais
e absolutamente diferentes
leve é o ser diáfano
transparecendo minha dor
voemos alegres
ser de miragens
permite-se
vagam em suas costas
nuvens
onde brilha uma estrela azul
e o dedo único carrega o manto

26
dorme em meu corpo
parte ancestral
dormida em sonhos
vivida em sono
pirâmide
néctar de deuses
e eu
quero este ser
incoercível sereia
canto
metade silvestre
metade enseada
metade mistério
metade mandala

27
há em várias faces uma verdade
várias verdades
compõem uma verdade única
vozes de pleno meio-dia
cortam o oh do nada
que há um estado átomo
vagando esperança incerta
de mil coisas certas
no dualismo do uno
no hormônio do absurdo
no absinto das eras
em uma verdade há várias faces
várias faces
compõem uma verdade única

28
o espanto de mim sou eu
nada espanta o meu próprio espanto
esparta
como peixe e nada
perigoso é o que não me diz inconsciente
a poesia diz silêncio
é difícil voar

29
lançarei todos os vôos
para contemplar
eternamente mais alto
água
voa vaga
entre touro e ursa maior
nas plêiades concretizo meu caminho
vagalume do reflexo
você é azul?
paro em alquimias

30
protoplasma peixe
carne êxtase
profanas vezes
igual a mim
ave
nascer
poema
pássaro
sem
penas

31
meu deus
substância eterna
éter e primeira
dai-nos sermos a substância
sendo espontânea e sem compromisso
nossos cheiros em chamas
em nadas em nados
nossa composição
sóis somos
não por desgosto
mas por exatidão

32
no contemporâneo clássico
gótico de mim
está a proto-história
como em meu protoplasma
a minha hora
corpo em estado meu
infinito limitado
fora o espaço
entre tudo e nada
esta falta
metafísica e carne
de tudo que é
vago teor de espelhos
nados
a paz de aceitar o risco
estamos sós como o cordeiro
e a varinha de condão nos dedos

33
entre fatos e fados
em nós há uma memória cósmica
aqui onde há o som
o sono do sol
quero um espírito de luta
e um coração de férias
é junho embora seja julho e outubro
e a moeda não importa nem os juros

34
somos
numa âncora ancoradouro
paramos
infinitamente modificados em movimentos
etéreos eternos
um dia e nada mais
mas em meu peito
meu coração palpita
como se nele nascesse
uma primeira estrela

35
quem fez o círculo pela primeira vez
não começou pela direita nem pela esquerda
a não palavra
amo
âmago
ômega
zênite
o self de mim
alheia à gravidade flutuo em espirais

36
na manhã que meus olhos permitem
quero
nadar em flores faunas
adormecer sendo
acordar exata
em acordo com a beleza
de uma forma única
que o corpo sabe
e o espírito comenta

37
minha individuação é intransferível
em estado permaneço cosmo
pessoa
persona
inusitado
forma mítica
o espanto que me cabe
é minha própria beleza
além do acaso
onde existe o pássaro
soprando arco-íris
em teclas azuis

38
as memórias retornaram
ao mesmo ponto
em um universo
onde não há culpas sob o céu
não penso intuo
entre o ser e o não ser
existe o frenesi da vida
– sou temporariamente humano

39
incrustada no gesto
estoura minha garganta
em busca do estalo
falo por falar
quando meu self
busca o infinito
meu ser
reduz-se
a tudo
a nada
do absoluto silêncio
faz-se a poesia

40
todo futuro está presente de alguma forma
o inconsciente é o consciente que se anuncia
tudo pulsa no universo
como também meu coração
memória cultural
inconsciente
coletivo eixo
com a força do que se diz bem ou mal
droit et gauche
são conceitos
muito mais é o animal de cada um
e o divino seixo

41
espírito astral
arco ave rara única
antilha
espera
mata nativa
negro
índio
terra
quero destravar
todas as traves
vagar todas as ilhas
soltar todas as aves

42
há uma frase que se perdeu no devaneio
ofereço-me pobre
rica rama
como o absurdo
e a consciência
onde através do verbo
fez-se carne iluminada?
não sei se destino acaso
desdita sorte sina
dádiva pecado
mistério matéria
alma ou mentira
fez-me aqui
de uma espinha de peixe
ou da cauda da sereia
ouvindo canto marinheiro ou nauta
no azul desta genética geométrica
marinha colorida de desejos
marcada entre morros coqueiros
urtigas e zelos
irremediável abelha
curto meu mel
em cortiços de areia

43
vem noite
cálida de lutas e presságios
põe a vespa no lugar do lusco-fusco
pirâmide de planctos e galáxias
encosta minha vertente no teu id
encontra minha chama na tua flama
e flauta-me de dor em teu espírito
esta ilha de nuvens e mágicas
ilha ilha-me
ilha em mim

44
após os cães
últimos cavalos
últimas patas
consoante guelra
peixe distante
vazio cio
água
liberdade viva
fluida flui
incontida entre meus dedos

45
minhas células
paralelos eixos
circulares como barcos
em minha tez orelhas
sou o que sempre fui
entranha nasci
pastos
partos
de que tribos?

46
treme sobre mim em frente
a tensão superficial do líquido
e escreve indecifráveis símbolos dourados
sobre a luz da meia noite
pulei a margem do rio
nadei
"navegar é preciso"
viver muito mais
intuído o risco
o outro lado do mar é o mar
o outro lado do outro é o outro
um sino na madrugada infinita

47
nós que vagamos nas brumas
e contemos incontidos dados
nós que somos olhos
nós que somos lados
em espumas de espaços navegados
partimos porque paramos
caminho à volta do pássaro azul
e uma vasta andorinha
entrecruzava las sierras
amiga do sol
de dia com a vida

48
há em tudo um sentido oculto
como palmito
que em flor deseja palmito ser
estranho inequívoco
você vomita você
nesta dita palavra
que é chama
e calar
no mundo das vozes
onde não se fala
afluxos do inefável

49
zen da vida
flexibilidade das ondas
fantasia
porto de avisos e folias
limpando como peixes as enseadas
poros abertos
sem dor
sem grito
ausentes o bem e o mal
acima do nirvana
irmão do ômega
zênite em mim

50
dardos confluem dados
procurando o terço exato
e as plêiades dormem indiferentes atos
orpheus ninfas sófocles safos
andaram na mesma nave – madrugaram
o eu de mim
me sou
pasto infecundo
necessário

51
a solução é ilusão de estar
ou questão de ótica
mito é imagem
poesia sedução
verdade mutação
dança e contradança
que o tempo escolhe em vão

52
vaguei por entre dores e cascatas
nasci
parte partida
onde a dor
nunca foi só minha
ilimitada
genética humana
por além do impossível
por todos os mortos
pelos vivos
comerei unhas e dentes
sereias e serpentes
em volta do mar remoto

53
apaziguando os verbos
sobrevivo
desfaço a dor
paralela
prismática gota
encontro meu ser
náufrago índio
ser de miragens
largo oceano
dorsal estado
na composição de ser
me sou

54
partir
metamorfose límbica
poder
estabelecer o espaço exato
a procurada plenitude da procura
todas as cores arrepios
consonante festa e carnaval
imenso inesgotável
espírito nativo universal